É importante enfatizar o adjetivo “aparente”, pois, de fato, há uma pletora de estimativas baseadas em casos e óbitos registrados, apresentados em curvas temporais e mapas, produzidos com grande sofisticação por cientistas de dados, em escala global (2). Portanto, a sensação de incerteza é em grande parte derivada do pensamento heurístico de se tentar realizar adivinhação sobre o caso individual (por exemplo: o que vai acontecer comigo, com meus familiares, meus vizinhos) baseando-se, na melhor das hipóteses, nos riscos populacionais que são estimados com a agregação dos dados sobre todos os casos ocorridos em um determinado território, durante um período especificado de tempo (3).
Situações de incerteza, comumente associadas a um certo sentimento de desamparo diante de um cenário aparentemente injusto (em que nos permitimos indagar: “por que isso está acontecendo justo agora? Justo comigo?”), são um terreno fértil para o desencadear de pensamentos que, em neurociência, são conhecidos como vieses cognitivos (4). Estes pensamentos, embora pareçam inofensivos em situações de normalidade, podem se tornar um risco em situações de vulnerabilidade social como as que ocorrem em tempos de epidemia (5).
O cérebro humano produz diversos vieses cognitivos, todos derivados da nossa evolução como espécie; embora haja uma crença de que a evolução somente traga benefícios para uma determinada espécie, isto nem sempre é verdade, especialmente quando esta espécie se torna uma sociedade tecnológica em tempo recorde, como o que aconteceu com os humanos (6).
Um viés cognitivo muito comum entre nós é o viés de confirmação (7). Tendemos a julgar como verdadeiras as ideias que confirmam as nossas próprias ideias. As redes sociais exploram esse viés de forma inédita na história humana, através dos seus algoritmos. Quando curtimos uma postagem, o algoritmo do aplicativo vai nos apresentar mais e mais conteúdos similares a ela, assim nos confinando em uma bolha de confirmação das nossas próprias ideias, sejam elas baseadas na realidade ou não. Esse mecanismo é intensificado pela possibilidade de bloquearmos conteúdos de que não gostamos (8).
A pessoa que somos hoje é um produto da nossa genética, do ambiente em que fomos criados, no tipo de educação formal que recebemos, e de todas as escolhas posteriores decorrentes desse substrato (9). Assim, se já somos adultos, já desenvolvemos uma série de vieses cognitivos que nos permitem seguir a nossa vida no dia-a-dia sem (ou com) muitas angústias. Uma parte considerável desses pensamentos são confortadores, mas muitos deles são ideias forjadas por outrem, sem conexão com a realidade material da existência. Um exemplo clássico é a convicção de que pessoas nascidas entre 22 de novembro e 21 de dezembro sejam mais expansivas, mais gregárias e gostem mais de festas e de viagens do que a média das pessoas nascidas no resto do ano. Embora conversas casuais sobre astrologia possam trazer algum entretenimento, não há evidência nenhuma na realidade de que comportamentos humanos complexos sejam regidos pela posição das galáxias no momento em que nascemos (10).
Se os vieses cognitivos tivessem apenas efeito individual, poderíamos dar a eles o benefício da dúvida e considerá-los inofensivos. Entretanto, eles permeiam as relações humanas, em âmbito familiar, profissional e coletivo e, portanto, interferem nas relações de poder da sociedade (11). Em uma área sensível como a medicina, especialmente em tempos catastróficos como os de uma epidemia, os vieses cognitivos podem ser manipulados para servir a interesses variados, sobre os quais as pessoas, individualmente, não têm nenhum poder. E uma maneira muito eficaz de manipular nossos vieses cognitivos é através da comunicação de massa (12).
Em tempos pré-internet, para os poucos idosos que se lembram deles, a informação vinha localmente através do senso comum dos familiares mais velhos ou dos “sábios da aldeia”. Mais tarde na vida, através da escola e de grupos sociais extra-familiares (a igreja sendo um dos mais prevalentes), obtém-se contato com outros conteúdos. No mundo moderno, uma fonte imensa de informações proveio cada vez mais das empresas de comunicação: jornal, rádio, televisão. Com a chegada da internet, as fontes de informação aumentaram de forma explosiva, se capilarizaram na sociedade e foram aproveitadas de todas as formas para a transmissão de todo tipo de ideias. Enquanto que no modelo de imprensa pré-internet ainda houvesse conselhos editoriais pautando as informações que seriam transmitidas, agora não há mais nenhuma possibilidade de controle de conteúdos e menos ainda das intenções de quem os transmite (13). Mas os nossos vieses cognitivos continuam sendo os mesmos de dez mil anos atrás.
Assim, em uma epidemia, em que a busca pela panaceia universal (ou seja, uma cura em dose única para todos nossos problemas) se intensifica, falsas panaceias são apresentadas o tempo todo, sem que o cidadão comum (e mesmo o médico atuante na frente de batalha) possa se defender adequadamente delas, se estiver agindo individualmente e baseando-se apenas em seus pensamentos e ideias preconcebidas (14).
Muitas vezes, a educação formal é apresentada como uma panaceia, o que está longe de ser, porque é um produto de sua própria sociedade e, assim, reproduz em si muitos de seus problemas. Mas ela é o melhor que temos, como antídoto contra os vieses cognitivos. E dentro disso, a ciência é o que de melhor a educação formal nos proporciona para nos tirar das trevas do senso comum, que raramente é bom senso (15).
Assim, nesses tempos de pandemia de COVID-19, nada melhor do que ouvir o que a ciência verdadeira tem a nos dizer, nesse caldo turvo das informações vindas dos grupos de WhasApp da família, do condomínio, dos nossos contatos nas redes sociais, do que assistimos em dezenas de canais de televisão, do que ouvimos na rádio ligada aleatoriamente no carro a caminho do trabalho, do que lemos no panfleto passado na frente de uma farmácia. Daí o termo “infodemia” do título, pois em paralelo à epidemia viral, ocorre uma epidemia ainda mais descontrolada de informações, onde é difícil de identificar o que é falso e o que é verdadeiro (16).
Para conseguir levar informações confiáveis aos indivíduos, os cientistas têm um enorme desafio em tornar as evidências empíricas tão ou mais interessantes que os memes. Isto não é fácil, pois quase sempre a realidade é complexa e matizada, diferente da singeleza da causa única e da solução mágica dos boatos, agora edulcorados com um nome em inglês, fake news (17). Para os médicos, ainda não inventaram nada melhor do que a velha e boa medicina baseada em evidências (18). No dia a dia da clínica, não é fácil resistir às pressões hierárquicas, políticas e financeiras indicando a mais nova panaceia contra a COVID-19, especialmente em uma sociedade que optou por não levar a sério o que realmente se mostrou eficaz até agora, que é o distanciamento social (19).
Assim, o ideal é continuar a exercitar o saudável ceticismo científico ensinado pelos bons professores (que nem sempre são os mais populares na época da faculdade), até mesmo na hora de seguir protocolos e recomendações clínicas de aparência científica e real conteúdo mercadológico ou ideológico. Como fazer isso entre os procedimentos para salvar a vida de mais um e mais um paciente? Não é fácil, mas aqueles entre nós que resistirmos a estes tempos difíceis sairão, provavelmente, mais sábios e fortalecidos.
Referências
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